Foi um resultado espetacular, suado e quase fraudado por um esquema no Congresso Nacional.
O novo presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), ostenta um perfil curioso. Em quatro anos como senador, ele chega à Presidência da Casa.
Sua característica mais marcante, até então, era uma discrição tão absoluta que o seu nome, quando pronunciado, automaticamente remetia ao baixo clero do Congresso.
Foi em silêncio, porém, que ele construiu a vitória contra o célebre vetusto Renan Calheiros (MDB-AL), um dos poucos sobreviventes de uma era em que as velhas e carcomidas prática prevaleciam simplesmente pela força de sua tirania – e pelo grande temor gerado por ela.
Enquanto o favorito lançou toda a sorte de tramoias, das mais sórdidas às mais comezinhas, muitas das quais sem qualquer pudor, a céu aberto, o senador de 41 anos do DEM do Amapá preferiu exercitar a boa política.
Ao longo das últimas semanas, intensificou o corpo-a-corpo junto a colegas de Senado e, paulatinamente, como se erguesse uma casa, tijolo a tijolo, obteve apoios importantes, como o do oposicionista Randolfe Rodrigues (Rede-AP).
“Ele é muito bom nisso, nesse jogo de bastidores”, disse Randolfe.
Com o auxílio do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), Alcolumbre pavimentou uma estratégia através da qual conseguiu algo que muitos julgavam impossível: superar o execrável Renan que, pela sua capacidade de estar sempre do lado sombrio da força, não raro desfrutou entre seus colegas o epíteto de “Highlander”, numa referência ao personagem vivido em uma série de filmes pelo ator Cristopher Lambert que nunca morre. Renan, ao menos politicamente, morreu.
No caminho trilhado por Alcolumbre pesaram alguns fatores que o aproximaram do espírito do seu tempo, no qual novos métodos se impõem.
O recém-empossado presidente do Senado não é exatamente um neófito na política. Antes de ser eleito senador em 2014, ele passou por três mandatos na Câmara.
Além disso, adicionou à sua plataforma a defesa do fim do voto secreto para as decisões dos senadores. Para a sociedade, algo que faz todo o sentido: se os senadores são representantes dos eleitores, ali não devem votar ao sabor de suas conveniências pessoais, mas de acordo com o que pensam aqueles que representam.
Renan chegou até superar seus próprios limites de caradurismo e prometeu que seria “um liberal, que iria ajudar a fazer as reformas”. Ninguém caiu na lorota. A maioria do Senado, enfim, ouviu a voz rouca dos indignados. E o Brasil que preza pela decência ganhou mais uma.
Durante todo o processo, os senadores demonstraram seu desconforto com a forte pressão oriunda das redes sociais. O senador Jorge Kajuru (PSB-GO) elaborou uma enquete perguntando aos eleitores como deveria votar.
O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que tinha chegado a sinalizar o voto em Renan, resolveu esconder o voto na primeira sessão. Na segunda etapa, depois de severamente pressionado, declarou seu voto em Alcolumbre.
Houve duas votações porque, diante da constatação da iminência da vitória de Alcolumbre, o processo de eleição se transformou num lamentável espetáculo circense. No qual, em um primeiro momento, a senadora Kátia Abreu (DEM-TO), aliada de Renan, teve o despautério de roubar uma pasta das mãos de Alcolumbre na tentativa torpe de impedir que ele presidisse a sessão.
Como se não bastasse, no segundo momento, a eleição acabou fraudada porque registrou-se uma duplicidade de votos em Renan Calheiros. “Foi uma vergonha”, classificou o senador Major Olímpio (PSL-SP). Em meio à barafunda que virou o plenário do Senado, Alcolumbre sobreviveu incólume, assistindo a tudo com uma calma que impressionou até os mais otimistas.
Não sem a ajuda da estrutura partidária do DEM. Em novembro, seu partido alugou um pequeno avião. Foi a bordo da aeronave que o senador conseguiu intensificar as negociações com as bancadas estaduais.
Em outra frente, Onyx Lorenzoni trabalhava de Brasília para convencê-los de que o voto certo era em Alcolumbre. Um processo que, inicialmente, provocou desgastes, dada a disposição de Major Olímpio, também da base do governo, de presidir igualmente o Senado.
Na véspera da sexta-feira 1, quando os senadores tomaram posse e foi iniciada a eleição à Presidência da Casa, a estratégia usada para destronar Renan foi concebida em reuniões que ocorreram numa espécie de “QG” da campanha: o gabinete do senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), que também ensaiou uma candidatura e recebia o apoio do bloco de oposição formado pelo PDT, PSB e Rede.
A ideia, no entanto, era tornar Alcolumbre o único remanescente da antiga Mesa Diretora. O presidente anterior, Eunício Oliveira (MDB-CE), não foi reeleito. Só havia outro nome da Mesa anterior, que era o senador Sérgio Petecão (PSD-AC). Mas ele foi convencido a renunciar.
A partir daí, o caminho estava aberto para Alcolumbre assumir a presidência. Deflagrou-se, então, a batalha que produziu cenas vexatórias em pleno Senado da República.

Bate boca colegial

Considerado aliado de Renan Calheiros, o secretário geral da Mesa, Luiz Fernando Bandeira de Mello, apresentou um parecer pelo qual Alcolumbre ficava impedido de presidir a sessão por ser candidato. Indicava que a peleja fosse comandada pelo senador mais velho, José Maranhão (MDB-PB), aliado de primeira hora de Renan.
Como remanescente da Mesa, Alcolumbre não teve dúvida: destituiu Bandeira. Assim, pôde presidir os trabalhos iniciais. Quando a eleição de fato começasse, Maranhão assumiria. Era a deixa para que Alcolumbre, então, decidisse uma questão de ordem formulada pelo senador Lasier Martins (Pode-RS): a que requeria o voto aberto na eleição. Lasier contava com o apoio declarado de 48 senadores (a maioria é 41) em favor do voto aberto.
Para garantir que conduziria a sessão, Alcolumbre aboletou-se na cadeira atrás da Mesa principal do Senado. Sentou-se no cômodo e lá permaneceu por mais de sete horas. “Vossa excelência deve estar usando fraldão geriátrico”, ironizou Jorge Kajuru.
Em meio a processo eleitoral, ele primeiro deu posse aos novos senadores. Submeteu, então, o voto aberto à apreciação dos colegas. Resultado: foi aprovado por 50 votos contra apenas dois. Se o voto fosse aberto, estava claro que Renan perderia. Os senadores que lhe franqueavam apoio só o fariam de forma velada, em razão do parentesco óbvio entre ele e a velha política.
Antevendo o infortúnio, Renan desesperou-se como nunca antes no Senado. Em geral frio e calculista, Renan perdeu por completo as estribeiras, comportamento este totalmente incondizente com a altura do cargo ocupado por ele. Mas, em se tratando de Renan, tudo é possível.
Possesso, por pouco ele não foi às vias de fato com Tasso Jereissati. “O responsável por isso é você, seu coronelzinho de merda, cangaceiro!”, disse, quando Tasso passou perto dele. “Você vai para a cadeia”, respondeu Tasso. “Venha para a porrada”, tornou Renan. A briga foi contida pelos demais senadores.
O momento mais constrangedor veio em seguida, quando Kátia Abreu (PDT-TO), aliada de Renan, resolveu roubar a pasta na qual Davi Alcolumbre guardava os pareceres técnicos de seus assessores para conduzir a sessão. Kátia ficou agarrada à pasta, tentando inviabilizar a continuação da sessão.
Gerou-se um impasse. O grupo ligado a Renan impedia Alcolumbre de realizar a eleição do novo presidente do Senado. Não restou outra saída senão adiar a eleição para o sábado 2, em busca de que no intervalo fosse costurado um acordo.
O que se construiu, na verdade, foi uma tentativa de intervenção de um Poder da República sobre outro. O PT estava ao lado de Renan.
A meia-noite, o MDB e o Solidariedade ingressaram no Supremo Tribunal Federal (STF) com um pedido de liminar para que a decisão de voto aberto determinada pelo Senado fosse suspensa. Na madrugada, o presidente do STF, José Antônio Dias Toffoli, ex-advogado do PT, como se já estivesse pronto para participar da tramoia, concedeu a liminar.
Ele estabelecia que a eleição marcada para o dia seguinte deveria ser com voto secreto, contrariando a decisão da maioria do Senado. Uma interferência, àquela altura, injustificável.
No sábado 2, porém, quando o Senado novamente reuniu-se para eleger o novo presidente, ficou claro que as chances de Renan pareciam natimortas. Em reuniões anteriores, outros postulantes à Presidência começaram a retirar suas candidaturas em favor de Alcolumbre.
Assim aconteceu com Simone Tebet, que pretendia disputar como candidata independente após ser derrotada por Renan na disputa interna do partido, e com Major Olímpio e Tasso Jereissati.
Os senadores combinaram ainda que mostrariam as cédulas de votação, abrindo seu voto, tornando-o, assim, público. Percebendo a derrota, Renan, ao fazer seu discurso de candidato, acabou renunciando.
“Esse aí não é o Davi! Ele é que é o Golias”, reagiu em seu discurso.
Uma última patacoada, porém, estava em gestação. Ao contar os votos da primeira eleição, verificou-se que havia 82 cédulas. Ou seja: um voto a mais que o número total de senadores, 81. Alguém tinha votado duas vezes. E duas vezes em Renan.
A irresponsabilidade anulou a votação, que precisou ser realizada novamente. Finalmente, Alcolumbre acabou eleito em primeiro turno com 42 votos, um a mais que a maioria. O Highlander estava derrotado.

Cirurgia atrapalhou o corpo a corpo

Réu em dois processos e investigado em outros onze, Renan Calheiros teme agora o seu destino. Com o revés no Senado, é nítido o isolamento. Após a eleição, acabou envolvendo-se em nova situação que poderá mesmo levá-lo a responder a um processo na Comissão de Ética.
Nas redes sociais, ele agrediu uma jornalista, insinuando que ela poderia ter tido relações com o pai de Simone Tebet, o ex-presidente do Senado Ramez Tebet. Na postagem constrangedora, que Renan depois retirou, ele chegou a escrever que Ramez, já falecido, teria usado um “membro mecânico” na relação.
Nunca um senador havia descido tão baixo. O derradeiro representante da velha política tisnada pela Operação Lava Jato sai assim da ribalta pela porta dos fundos.
Na avaliação de muitos senadores, é preciso ver como o vingativo e experiente Renan reagirá. Seu fôlego, porém, não parece ser o mesmo. Em seu lugar, adentra à cena Davi Alcolumbre – o Davi que destruiu Golias. A sociedade espera que ele compreenda o que a sua vitória representa.

Kátia tomou o regimento

As duas sessões que culminaram com a eleição de Davi Alcolumbre (DEM-AP) como presidente do Senado foram repletas de lances inusitados. O mais circense de todos foi quando a senadora Kátia Abreu (PDT-TO) resolveu roubar de Alcolumbre a pasta que continha as orientações técnicas de seus assessores para que conduzisse a sessão e as anotações sobre a ordem a ser concedida para os pronunciamentos dos colegas.
Aliada de Renan Calheiros (MDB-AL), que também concorria ao cargo, Kátia Abreu foi tomada por desespero depois da votação que determinou que a votação seria aberta, e não secreta – um processo que levaria à derrota de seu candidato. Passou a andar, então, abraçada à pasta com os dois braços sobre o peito.
No dia seguinte, ao se perceber protagonista do momento mais infantil das sessões, Kátia Abreu desculpou-se com Alcolumbre e lhe deu um buquê de rosas brancas para simbolizar a paz.
Mesmo assim, manteve consigo a pasta como se fosse um troféu. “Não devolvi a pasta, mas dei flores”, disse, em tom de brincadeira.